A atividade do instrutor de trânsito foi uma das muitas que passaram por mudanças e adaptações nos últimos dois anos, com a pandemia da Covid-19. O profissional responsável por formar novos condutores enfrentou aulas on-line, incertezas no mercado de trabalho e até projetos de lei que poderiam mudar de vez a atividade.
Há mais de 10 anos na profissão, Rafael Souza acredita que a pandemia forçou os Centros de Formação de Condutores (CFCs) e a própria atividade a se reinventarem. “Já era um grande projeto tornar as aulas teóricas em on-line, mas todas essas novidades estavam paradas, não era colocado em prática. Enquanto várias outras formas educacionais já eram on-line, a gente já tem várias faculdades à distância (EAD), a autoescola ainda não. Então a pandemia mudou sim a forma como se ministra a aula na autoescola. Eu acredito que agora o processo para tirar a habilitação ficou mais rápido”, afirmou.
Apesar de destacar esses pontos positivos, Rafael, que entrou no ramo especialmente por valorizar certa liberdade e flexibilidade que seriam possíveis, acabou se deparando com muitas incertezas nos últimos tempos e admite ter enfrentado receios com a profissão.
“Durante a pandemia, os instrutores sofreram muito com a falta de aulas, principalmente no meu caso de instrutor que ganha por hora-aula, acostumado com uma renda. Vamos dizer que o instrutor estava acostumado a ganhar três mil reais por mês, veio a pandemia e ele ficou só com o salário fixo de mil e poucos reais. Então a pandemia assustou, prejudicou e mudou tudo”, explica.
Obstáculos
Ainda segundo o instrutor, muitos colegas acabaram deixando o ramo, enquanto outros entraram acreditando que essa seria uma opção viável. Mas no dia a dia, a correria é grande. Ele conta que, como não há um intervalo suficiente entre as aulas, muitos não conseguem fazer uma refeição saudável e acabam cedendo aos lanches de rua, sem tempo até mesmo para higiene pessoal.
Apesar disso, Rafael diz que a maior dificuldade da categoria é o salário.
“Cada estado tem um salário diferente. Por que não se agrega os sindicatos? Por que não agrega ao Ministério do Trabalho e defina um salário para o instrutor? A parte que o instrutor mais pede, mais reclama é a questão do salário”, questiona.
De acordo com Souza, essa questão salarial carece de uma maior fiscalização do órgão fiscalizador, o Detran, que precisa fiscalizar se os salários são pagos e se o fundo de garantia está sendo depositado. “A corregedoria do Detran vai até a autoescola e fiscaliza, mas por que não fiscaliza também se o fundo de garantia está depositado? Fiscalizar de verdade! Não deixar a autoescola ficar renegociando as dívidas. Fazer com que a autoescola só use o sistema do Detran se todos os salários do instrutores estiverem em dia e seus fundos de garantia depositados. Enquanto não virar regra, a situação não vai mudar. O instrutor,fica sozinho nessa. Falta orientação, formação e regras mais rigorosas sobre essa questão de salários atrasados e salários defasados”, desabafa.
Adaptações
Como a pandemia pegou todos de surpresa, as mudanças precisaram ser quase que imediatas, o que pode ter atrapalhado a inserção da nova modalidade de ensino.
“Talvez tenha faltado um período de preparação e adaptação dos instrutores de trânsito para desempenharem essa nova ferramenta tecnológica. Nesse sentido, ficou evidente que todas as autoescolas/CFCs do Brasil inicialmente tiveram dificuldades. Neste momento, porém, entendemos que todos conseguiram se adequar ao curso remoto e a percepção é de que a modalidade de ensino veio para ficar”, diz o presidente da Federação Nacional das Autoescolas (Feneauto), Magnelson Carlos de Souza.
O representante da Federação reconhece a tecnologia como indispensável para o futuro da profissão e para o papel do instrutor na sociedade, mas também reconhece uma necessidade de capacitação dos profissionais. Além disso, ressalta que a figura humana na formação de condutores é indispensável.
“Claro que é importante essa evolução. Temos que reconhecer, porém, que os cursos de capacitação de instrutor de trânsito, diretor de ensino e geral e examinador de trânsito, estão muito defasados. Faz-se necessário uma atualização e modernização desses recursos humanos. Se reconhecemos que a capacitação está longe de ser a mais adequada nos dias de hoje, os cursos de atualização desses profissionais estão muito aquém daquilo que deveria ser o seu propósito. Precisamos urgentemente fazer uma revolução na formação e atualização desses profissionais, diminuir o prazo das atualizações, assim como propor a realização do ENIT e ENET. Temos que demonstrar a sociedade brasileira e as autoridades que o nosso setor está preocupado e sensível com a atualização, inovação e modernização”, destaca.
Descrédito na categoria
Instrutores de autoescola e as próprias instituições de ensino já há um tempo estão na mira de alguns projetos de lei que propõem mudanças na regulamentação e exercício da atividade. Um dos principais deles é o PL 4474/2020, de autoria do deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP). O projeto propõe a desobrigação de treinamento nessas instituições para fins de obtenção da CNH. Em outras palavras, o fim das autoescolas.
Sobre o assunto, Magnelson diz que a Federação se posicionou oficialmente em relação a todos os PLs que tramitam no Congresso Nacional, que tratam do processo de formação de condutores. Ele diz que entende a necessidade de modernização desses serviços, mas que é necessário um amplo debate e construção de um novo modelo. “Temos que ter a preocupação e a responsabilidade de não tratar esse assunto de forma assistencialista. Em outras palavras, a obtenção da CNH não é um direito do cidadão, e sim uma conquista. E, portanto, deve ser tratada com a devida seriedade”, apontou.
O presidente também diz que esse possível descrédito às atividades de formação de condutores, seja em relação ao profissional e ao CFC, vem de uma ideia cultural de que a autoescola seria um “facilitador para obtenção da CNH”.
“A Feneauto e os sindicatos estaduais estão trabalhando muito nessa mudança de percepção. Nesse sentido, o nosso grande desafio é transformar as Autoescolas/CFCs em entidades de ensino e fazê-las entender como devem se portar”, disse.
Já Rafael Souza opina que muitos desvalorizam a profissão porquevários alunos saem da autoescola “sem saber dirigir de verdade”. “Todo dia no trânsito a pessoa aprende algo novo. Só que algumas pessoas tem a crença que tem que sair da autoescola sabendo tudo e isso é algo impossível. A pessoa estar pronta para o exame, por exemplo, não quer dizer que está pronta para dirigir no trânsito sozinha. Para dirigir para passar no exame, em média a pessoa precisa ter 34 aulas. A quantidade que o Detran determina hoje é 20. É muito pouco”.
Rafael sugere que a carga horária deveria contemplar 40 aulas ao invés de 20. “Isso, porém, seria difícil de ser colocado em prática porque iria dobrar o preço final”, argumenta.
Futuro
Ainda assim, o instrutor veterano não acredita no fim da profissão. “Em muitas situações, o candidato treinando com uma pessoa capacitada, como um instrutor de autoescola, faz 20 aulas e às vezes compra mais 40 aulas na autoescola e ainda não consegue passar no exame de direção do Detran. Agora imagine ela treinando com o tio, pai, mãe ou namorado? Ela não vai passar no exame de direção mesmo! É claro que há projetos do instrutor de autoescola se tornar independente, aí sim que vai fortalecer a profissão. Eu acredito que esse é o futuro: o instrutor da escola se tornar independente nos próximos anos”, garante Rafael.
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